“Não compartilho meus pensamentos achando que vou mudar a cabeça de pessoas que pensam diferente. Compartilho meus pensamentos para mostrar às pessoas que já pensam como eu que elas não estão sozinhas." (autor desconhecido)

18 julho 2024

Série "Estes contos que eu lhes conto" - I

O intempestivo e malcriado rompante da minha perua

Era o último sábado de julho do ano de 2007; um luminoso e agradável dia do inverno carioca. Eu era o proprietário de uma "perua" Ford Escort, já com dez anos de uso; um bem conservado, bom e confortável veículo. Por volta das onze e meia da manhã resolvi levar a belezura para uma "geral", em um posto de serviços próximo a minha residência. Começou aí minha agonia.

Estacionada, com o para–choque dianteiro coladinho no da minha perua, bem de frente, estava lá, imponente, luzidia como uma baixela de prata, uma outra perua. Tratava-se, não se impressionem, de uma francesinha de sangue azul, uma Renault Mégane Sport Tourer, motor turbo de 2 litros, com 180 cv de potência.

O motorista, posso até apostar três mariolas, não devia ser o dono daquela maravilha sobre rodas. Não; um proprietário de joia tão cintilante não seria tão insensato a ponto de estacionar seu patrimônio numa rua secundária e esburacada do subúrbio carioca, com o chão todo enfeitado de cocô de cachorro e lixo, muito lixo pela calçada (a Comlurb, como vocês sabem, é terrível), a não ser que premido por coisa incontrastável, premência esta que me faz somente colocar em risco três mariolas.

Alguns minutos antes, um vira-latas já havia batizado uma das rodas da francesa, uma preciosidade de liga leve diamantada, faiscante (cães vadios adoram delimitar seus territórios, balizando-os em rodas de carros).

Já sentado ao volante da minha perua, pensei: O imprudente motorista vai levar um susto quando vier pegar a Mégane. Mas quem foi tomado de intenso sobressalto não foi o incauto, fui eu; o diabo (ou será a diaba) da perua se recusou terminantemente a funcionar com um mínimo de decência.

Quando liguei a ignição foi um ranger danado de correias, eixos, bielas e pistões. Na primeira tentativa, nada, só aquele rilhar de mal prenúncio. Na segunda tentativa, nova rilhação, só que desta vez mais zangada. Outra tentativa; a última, se não pegar, largo essa coisa velha e volto para os meus discos dos Beatles, ideais para serem ouvidos em sábados invernosos.

Então foi um mhan nham nham nham lerdo, o que era sinal de aborrecimento da bateria. Outro mhan nham nham nham seguido de um pof pof pof assustado e logo a seguir um tranqüilizador vrom vrom vrom consoante com minhas exaltadas compressões no pedal do acelerador. Aí tirei o pé e seguiu-se o velho conhecido tuh tuh tuh tuh entressachado por um ou outro pof pof pof.

Meu coração, que já apresentava uma leve taquicardia, serenou. Fixei o cinto de segurança, liguei o rádio, previamente sintonizado na JB, engrenei a primeira e acelerei suavemente, todo respeitoso. Aí veio o pânico. Foi uma desconjuntada sinfonia de tuhhh tuhhh, vrommm, pooof pooof pooof, tummm tummm, tuhhh tuhhh, pooof pooof pooof, tummm e depois de um solavanco atrevido e desrespeitoso, a perua danada "morreu".

Voltaram as palpitações no peito e um suor frio se anunciou no meu rosto esfogueado. Era já uma pontinha de exasperação, uma pontinha de nada. Dei umas quatro respiradas profundas e parti para a derradeira tentativa. A resposta da maldita perua foi um debochado mhan nham nham nham indolente e preguiçoso, que denotava toda sua insubmissão ao dono, todo seu escárnio.

Desisti de dialogar com aquela máquina insensível, insurgente, sediciosa, que naquele momento devia sim era estar acometida de uma impolida crise de inveja da Mégane Sport Tourer, que ainda há pouco estava, majestosa, tão pertinho dela. Se bem que, reconheço, ultimamente não a tenho tratado como ela merece. Pensando bem, semana que vem vou mandar fazer aquelas intervenções nos pára-choques e nos espelhos retrivisores, que ela tanto tem reclamado.

Ainda pensei em convocar a presença de Zenóbio "Cará", o mecânico mais respeitado da região, mas recuei, lembrando da placa de papelão, escrita com "pincél pilot", que milagrosamente continua presa por um pedaço de barbante roto no portão de madeira da sua oficina, na rua de baixo.

Na placa está escrito, pelo próprio Cará "Não mecho nos carro com engessão, só nos carburado" (a vírgula é uma intromissãozinha minha na frase de Zenóbio).



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